31.5.14

Explicação do Tempo



De todas as formas de medir o Tempo
Só a música se explica aos homens
O coração é dança íntima do corpo
O assobio é uma morte que se aceita
E cantar é ser eterno pela boca

(à noite faltam todos os tambores)

16.5.14

Nenhuma Vida



A poesia é uma estafeta triste
Uma dor de mão em mão florida
Doença de morrer pelos olhos
E às putas todos os suspiros
Amar para dentro é só dentro
E nenhuma vida tem sílabas

O Meu 25 de Abril



A Memória

A faca de mato trazida da Guiné, fotografias e diapositivos de paisagens cor de terra, mulheres negras de peitos caídos, feiticeiros a meio de um ritual. Homens em camuflado com o cigarro ao canto da boca, mas não são homens, são rapazes, um deles tem o meu sorriso e a minha maçã-de-adão. Aerogramas guardados no fundo de um armário, garrafas de whisky com os rótulos amarelecidos (Grand Old Parr, export), cassetes ouvidas muitas vezes no gravador que usava para o ZX Spectrum: “De toda a parte chegam os vampiros…”, “Ei-los que partem, novos e velhos, buscando a sorte, noutras paragens…”. Um avô que contava histórias dos informadores da PIDE que lhe frequentavam a taberna, do leite que vendia misturado com água, da fome, das sardinhas secas, da miséria que era aquilo. Um outro avô emigrado que trazia chocolates recheados de framboesa e palavras francesas pelo meio das outras. O “respeitinho”, o “não parece bem”, “os pretos”, os “fachos”, os “vermelhos”, os “retornados”. Um país a preto e branco que de repente cantava eurovisões de lantejoulas e camisa amarela. Um país menino que quis ser grande e calçar sapatos europeus. Um país que tropeça, e se levanta, e que tropeça.



As Obras

Tenho alguma dificuldade em escolher uma obra que represente o 25 de Abril, apesar do esforço louvável da Maria de Medeiros com o “Capitães de Abril”, demasiado tardio para que me ficasse gravado. Talvez o “Torre Bela”, com o espanto e os excessos do PREC, com todo o entusiasmo e a desilusão. Guardo as imagens do “antes” nas comédias portuguesas com o Vasco Santana, o Ribeirinho e o António Silva, tão brilhantes que resistiram à propaganda e conseguem ser ao mesmo tempo ingénuas e engenhosas. O “Povo que Canta” do Michel Giacometti, um Portugal tão próximo e tão distante, a carpideira que arrepia porque chora muito mais do que uma morte, um país tosco e subnutrido que canta sabe-se lá porquê. O Zeca Afonso, decididamente o Zeca Afonso, a “Grândola” que não precisava de mais do que os passos cadenciados na gravilha. Quanto a livros, fico-me pela tetralogia do Almeida Faria, que descreve os tempos todos por dentro e por fora e onde, no “Lusitânia”, numa carta datada de 25 de Abril, se pode ler: “Não aparece uma revolução assim do pé para a mão, se calhar nunca mais terei outra ocasião de ver um regime esticar o pernil, se é que não se trata de um engano…”. E a dúvida enorme cresceu connosco: Se é que não se trata de um engano. 


(Texto publicado no Jornal de Letras de 16 de Abril de 2014)
 
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