30.9.13

Ponto de Fuga

Fazias croché encostada ao muro, era cedo e cheguei-me a ti.
A casa tinha um jardim maltratado, portas de madeira ressequida e paredes antigas cheias de verde.
Falei-te das minhas coisas e era uma hora estranha; porque a luz, porque a rua vazia, porque a noite em claro e um poema incompleto.
Não me lembro do teu nome, eras o que ali me faltava e não me lembro do teu nome.
A cabeça baixa nas mãos a puxar linhas e eu a medo nas palavras. O meu passado, o que fazia, as artes que praticava. Não sei já o que disse, atento ao tom mais do que ao sentido, para que soubesses, para que olhasses para mim e adivinhasses o buraco fundo que era eu.
Um poema escuro de fim de amor, embrulhado em anos, atado em versos que nunca mais hão-de rimar.
Os teus amigos passavam e olhavam. Eu não era dali e a sombra que deitava mudava-te o rosto, a minha sombra de ser buraco.
Sorrias nas perguntas, a lã vermelha pendurada das mãos e os pés para dentro como se tivesses crescido ontem e ainda te sobrasse o corpo. Mas era eu que sobrava, tu fazias croché e arrumavas a linha no desenho dos olhos.
Atravessou-nos um silêncio de nuvem, encolhi-me num livro e fiquei a esperar calado.
Convidaram-nos para comer e eu trazia fome e um poema incompleto. Quis dizer que sim, mas esperei que falasses e ouvi-te recusar, que tinhas alguém à espera; alguém, disseste alguém.
O meu poema espalhado num caderno de linhas que abri. As frases muito sujas, pardas de cor, tão daltónico andava de todo o coração.

Depois de ti tive de limpar as palavras

Fui lendo em voz alta, como se estivesse sozinho mas fixo no mexer dos teus dedos. Os versos enroscavam-se na linha e faziam malha, ajeitados por ti, com as tuas certezas todas, de estares ali e alguém à tua espera.
Como eu não tinha, nem certezas nem ninguém.

Levaste contigo a ideia de nós

Fez-se tarde e levantaste o olhar. Tenho de ir, disseste, beijaste-me e foste. Desceste as escadas com a malha inacabada, o que restava da manhã e a melhor parte do meu poema.

Sei hoje, porque perguntei, que caminhávamos por ruas contrárias do amor. Por isso correste e eu fiquei onde estava, a ver fugir o vermelho do meu poema. 

(Conto escrito em 2011 para uma revista que nunca chegou a ser feita)

26.9.13

Mal ao Longe

Não sei por onde andas agora
lembro-te cada vez mais longe
em dias assim, de chuva, de noite
fechado nisto que não mudou
Vejo-te às vezes por essas ruas
se por acaso chega o Outono
ou dores antigas e maiores
vejo-te às vezes por essas ruas
E digo adeus, sincero, míope
as sílabas todas do teu nome
o único poema que sei de cor
e grito cada vez mais longe

24.9.13

Falhar mais, falhar pior

Cada poema é um falhanço, a medida entre o que quis e o que obtive, a distância entre onde me propus chegar e onde as forças me deixaram. Já para não falar de amor, mas falamos sempre, sobretudo quando não dizemos nada, calados como um fósforo por arder. A poesia é também esse silêncio incompetente, onde não acontece por palavras o que não pôde acontecer por outros meios.
Quantos mais poemas foram escritos, mais longe ficámos, mais quisemos, mais loucos, mais sentimos acima das nossas possibilidades. Páginas e páginas como um cemitério de intenções, uma biografia que nos desautorizaram, um diário de noites mal dormidas.
E fica a inveja humilde mas sincera desses outros que nem sei se existem, os infames cabrões felizes e ágrafos, sem uma linha que se possa consultar. 

19.9.13

Equinócio

Árvores são máquinas de caírem folhas
como nós somos de doer e fim e noites
E quando choramos não fazemos mais
do que a nossa mui íntima obrigação
Se amamos tão úteis quanto uma flor
pétala a pétala até chegar o Outono
é porque não assinámos o tempo
E clandestinamente vamos caindo
amparando as mortes com beijos
à espera de um fim para começar

6.9.13

Coisa Alheia

Conheci-o num boteco da Lapa. Eu estava lá para almoçar, ele para beber.
Tinha pedido um dos pratos do dia e pensava na reunião da manhã. Na mão um livro de poemas que tentava ler, voltando sempre ao primeiro verso do qual não consegui passar: A palavra torna o corpo coisa alheia.
Ele reconheceu o sotaque e veio sentar-se a meu lado segurando um copo de cachaça. Lisboa, Porto, Coimbra? Trocámos perguntas e algumas poucas informações. Chamava-se Fernando, como o poeta, dizia, como o poeta, e a cachaça num gole.
Comi, pedi um café e fui ficando. Ele falava da vida misturando a língua de dois países, queixava-se dos cariocas com pouca convicção, depois as mulheres, as mulheres… e o tom de voz a baixar, como se estivesse a apanhar fôlego.
- Três casamentos, três, acredita, amigo? Sempre à procura sei lá eu de quê. O mal é sempre o mesmo, e o bom também, o pouco bom também…. dois filhos das duas primeiras, à terceira não deu tempo. O amigo tem filhos, uma mulher?
Disse-lhe que não tinha mas não fui capaz de explicar porquê. Nunca mo tinham perguntado, por isso não tinha uma razão.
- Tenho agora aí uma moça apalavrada… de cada vez eu digo: Não te metas já noutra, Fernando, dá tempo a essa merda, pá, dá tempo, Fernando… mas depois… eu sei lá, depois um gajo esquece-se, um gajo é foda, não é, amigo?
Acenei que sim e comecei a procurar um pretexto para sair. O homem ia-se afogando, as palavras fundiam-se em vogais indistintas e o olhar cada vez mais baixo, como se o copo um poço e a cabeça uma pedra. Mas de repente endireitou-se na cadeira e a voz de novo lúcida, o último estertor.
- As mulheres esperam meses, anos, antes de se meterem com outro, e a gente não, vamos a correr para a primeira que nos ampare a queda. E sabe porquê? Sabe, amigo?
E, mais uma vez, eu não sabia.
- A gente tem o filme todo feito, mal um cara começa a ganhar um dinheirito faz logo o filme todo… e se falta a actriz principal é só preciso arranjar outra, e começa o casting… não é assim? É assim é… Mas elas são outra coisa, amigo, elas fazem um filme diferente de cada vez, à medida, olham para a gente, tiram-nos a pinta e escrevem uma história. E por isso demoram tempo, é preciso mudar tudo, entende? Tudo! O argumento, o cenário, a banda sonora… A gente tem só uma vida, e elas têm tantas…
Silêncio, e o Fernando já ali não estava.
Pedi a conta, desejei-lhe sorte e saí. O livro ficou esquecido na cadeira, apercebi-me à noite, que é quando os poemas fazem falta. Ficou-me apenas o primeiro verso, agora na voz tropeçada de Fernando: A palavra torna o corpo coisa alheia.

(Obrigado ao Wesley Peres pelo verso)

2.9.13

Geográfica

Há lugares feitos para doer
para que o mal tenha chão
morada e um código postal
Há ruas onde não durmo
ruínas que foram casa
paredes que já não são
E o amor se ainda houver
há-de encolher-se também
e sofrer por onde caiba

 
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