16.4.12

Lugar

A cidade tem culpas por dentro da gente.
Andamos por cima da cidade, polimos-lhe as esquinas e até dormimos nela. Temos medo, e confiamos em membranas que nos protejam: a sola dos sapatos, as roupas que trazemos, janelas ou pálpebras fechadas.
Mas a cidade tem dedos finos que entram pelos olhos e pelas narinas e pelo meio de tudo. Dedos que agarram por dentro e não largam mais. 
É negro o chão da cidade e nem sabemos porquê. Talvez o queiramos assim, talvez o não saibamos evitar. Como seriam as vidas se assentassem noutras cores?
A cidade é uma insónia de todas as horas, frémito nosso nela, nós nisso, nós o que bule, o que intoxica e mata. A cidade mata todos os dias.
Aqui morrem duas vírgula oito pessoas por dia. Duas pessoas e oito décimas de pessoa a morrer todos os dias.
Somos células especializadas da cidade. Limpamos, construímos, carregamos partes de um lugar para outro, transformamos energia em movimento e pensamos por ela. Células que morrem e nascem todos os dias, partes que adoecem e multiplicam.
Somos partes pequenas e fundamentais, vivemos enquanto servimos, até que se esqueçam de nós ou nos falte o amor.
Foi a cidade que inventou o amor.
Não podemos amar sem geometria. Ruas que cruzam ruas, esquinas que dobram vidas, jardins onde os corpos passeiam e se escondem, um tecto onde o amor cresce e se alimenta de noite.
São de toda a importância as árvores da cidade, como os candeeiros, a cor dos contentores, a inclinação das ruas e os desenhos na calçada.
Pode muito bem amar-se só por estarmos aqui.

(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

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