27.6.09

Marcelo (Trezena Parte)

Falemos agora do procedimento. A cada jogador são dadas duas cartas, duas. A melhor combinação entre estas e as cinco cartas dispostas na mesa dita o vencedor. Quem perde as fichas vai saindo do jogo, até ficar apenas um. Um vencedor que leva tudo e quatro perdedores que voltam a casa com as mãos vazias e o coração cheio de rancor. Se não rancor, pelo menos remorso, ou desalento, ou um projecto vago para mudar de vida.

O nosso plano assentava na invisibilidade do Marcelo, julgávamos ter aí uma vantagem considerável. O problema é que nos jogos sérios, envolvendo trocas monetárias, as cartas escondem-se bem, mesmo de gente invisível. Seria impossível a Marcelo ver o jogo de todos eles, talvez de um ou outro, mas não mais. Marcelo teria de aproveitar a fracção de segundo em que cada jogador vê o próprio jogo, a partir desse momento as cartas são deitadas de costas e assim ficam até ao final. Prevendo estas dificuldades havíamos decidido que durante um primeiro momento nos guiaríamos apenas pelo instinto e pela experiência de Marcelo, aguentando o jogo até individuar os melhores jogadores, a partir desse momento daríamos início ao ardil.

Começou-se a medo, devagar, com muitos olhares em volta e bambeares de corpo. Não houve apostas altas nem grandes perdas mas começaram a definir-se tendências. Os meus oponentes revelavam-se, as máscaras iam-se descolando com o suor e deixavam entrever nervos íntimos, tensos e vibrantes.
De todos, o mais curioso era sem dúvida o mestiço. A sua face espelhava as probabilidades de vencer. Não sorria e não se movia, era a sua fisionomia que se alterava. Quando o jogo era fraco parecia uma estátua de ébano mal talhada, com sombras improváveis despontando por toda a face. Se a sorte lhe era favorável, tornava-se numa criança redonda e luzidia. A própria cor da pele parecia ser sensível ao rumo do jogo. O funcionário era um homem inseguro, pernas a abanar em contínuo e mãos que não encontravam onde ficar por mais de cinco segundos. Nos momentos críticos que pediam decisões, aumentava a frequência das oscilações ao ponto de as transmitir aos copos de whisky. O número de ondas presentes na superfície do líquido dava uma medida exacta das inquietações do indivíduo.
O velho era absolutamente inexpressivo, ganhasse ou perdesse mantinha exactamente a mesma cara e só convocava os músculos para fumar ou beber. Nenhum ponto fraco à vista, um adversário difícil.
Finalmente a mulher... ninguém era capaz de olhar muito tempo para ela, não era possível. Bastava-lhe um movimento ligeiro, feito com uma qualquer parte do corpo, para desviar atenções e enxotar curiosidades. Os nossos olhares saltavam dos ombros para o decote, do decote para as pernas, das pernas para as mãos e no meio desse frenesim não havia modo de compreender o que quer que fosse. Prestidigitação segura e experimentada.

O jogo prosseguia e os elos fracos estavam agora a ponto de se romper. As fichas que lhes restavam não davam para fazer cantar ninguém e as ondulações no whisky faziam temer pelos cubos de gelo. Eu ia-me aguentando, sem grandes perdas ou ganhos mas colado ao pelotão da frente. Em breve seríamos três à mesa, passávamos ao segundo nível. O Marcelo piscou-me o olho e depois fez a dança dos momentos decisivos, demasiado parva para ser aqui descrita.
(Continua, em breve)

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