26.3.09

O Marcelo (Segunda Parte)

Eram inúteis as desculpas, o importante é que o meu amigo tinha fome e havia que alimentá-lo. Saímos os dois de casa e fomos até uma churrasqueira, dessas onde os pobres dos frangos passam os dias às cambalhotas bronzeando-se em frente à grelha.

A indumentária do Marcelo causava-me alguma apreensão. Vestia um pijama às riscas amarelas e trazia calçados uns chinelos do Pato Donald que lhe davam um andar estranho. Porquanto ele pudesse ser fictício, aqueles não eram preparos para sair à rua num dia sem terramotos. Lembrei-me então que talvez ele se apresentasse invisível a todas as outras pessoas, como nos filmes de domingo à tarde. Deixou-me sereno esse pensamento e senti-me até privilegiado, talvez eu fosse o único capaz de o ver e de o ouvir, como num filme de domingo à tarde. De resto tudo parecia confirmar tal hipótese; durante os duzentos metros que fizemos até chegar ao “Imperador dos Galináceos”, eu cauteloso nas minhas elucubrações e ele assobiando em traje de palhaço pobre, não vi que se voltasse uma só cara franzida em espanto ou censura. Tendo em conta o carácter conservador e moral do bairro onde eu vivia, em que uma camisola mais arrojada poderia votar o prevaricador ao desprezo ou ao degredo, ficava provada a invisibilidade total e capaz do excêntrico Marcelo.

Chegados ao “Monarca do Aviário” sentámo-nos num canto discreto e perante o olhar desconfiado da empregada pedi uma dose capaz de alimentar uma matilha de lobos; enfim, uma pequena matilha de lobos medianos. O Marcelo esfregava as mãos de contente e pôs-se a cantar uma música parva que falava de uma estalajadeira gorda que tinha uma filha gaga. Que sítios estranhos deve frequentar a malta imaginária.

Esperávamos pela comida e eu tentava saber da sua vida fazendo-lhe todo o tipo de perguntas abstrusas. De nada valeram os meus esforços, ele respondia-me com frases retorcidas e incompletas que interrompia a cada dois segundos para espreitar a empregada. Acabei por desistir e lá chegaram os frangos acompanhados por algumas batatas vividas e uma salada inconsolável. O Marcelo lançou um grito de guerra e meteu-se debaixo da mesa de onde me pediu uma coxa, aparentemente a sua parte preferida. Enquanto mastigava alarvemente explicava-me por gestos que assim se evitava o assombro dos outros clientes.
Tinha razão o Marcelo, mesmo no “Reino dos Galiformes” uma coxa a voar sem frango era coisa de admiração.
(continua)

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